PROCURADORIA – Veto Mensagem nº 051
MENSAGEM Nº 051/2020
Santa Luzia, 21 de julho de 2020
Excelentíssimo Senhor Presidente,
Dirijo-me a Vossa Excelência, com cordiais cumprimentos, para comunicar que, com base no § 1° do art. 53 e no inciso IV do art. 71 da Lei Orgânica Municipal, decidi opor VETO integral à Proposição de Lei nº 047/2020, que “Dá nome ao logradouro público de Rua Décio Araújo, localizado no Bairro São João Batista”, de autoria do Vereador Ivo Melo.
Verificados os pressupostos essenciais para as razões que adiante se expõem, temos o conflito ensejador da oposição por motivação de inconstitucionalidade e contrariedade ao interesse público, nos seguintes termos:
Razões do Veto:
I – DO PLANEJAMENTO URBANÍSTICO
É sabido que a legislação sobre parcelamento do solo é vasta, com instrumentos normativos nas esferas federal, estadual e municipal. Tal arcabouço jurídico visa propiciar um adequado ordenamento territorial e um meio ambiente equilibrado, cuja proteção é inclusive constitucional, podendo se citar como exemplos o inciso VIII do art. 30, o art. 182 e art. 225 da Magna Carta.
Vale explicitar que o supracitado inciso VIII do art. 30, dispondo sobre a competência dos Municípios, estabelece que a tais entes federativos cabe “promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano”, enquanto o art. 182 preceitua que “A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem- estar de seus habitantes”.
Nessa esteira, vê-se a importância de se cumprir estritamente os regramentos constitucionais atinentes à matéria em exame, o que significa afirmar que antes de se denominar uma via pública, há que se promover o adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano, devendo-se obedecer às diretrizes fixadas em lei, relativamente à política de desenvolvimento urbano, o que, por óbvio, inclui as normas urbanísticas aplicáveis.
Nesse contexto o autor Kiyoshi Harada[1] esclarece que:
“[…] a execução do plano urbanístico pressupõe planejamento prévio do desenvolvimento da cidade, em termos de distribuição espacial da população e das atividades econômicas do Município e da área sob sua influência. Sem isso, o Poder Público não teria como corrigir ou evitar as naturais distorções que surgem com o crescimento da cidade, causando danos ao meio ambiente. O planejamento urbano abarca, pois, um campo bastante amplo, desde oferta de equipamentos urbanos e comunitários, transportes e serviços públicos adequados, até a ordenação e controle do uso e ocupação do solo urbano.” (grifos acrescidos)
II – DOS REQUISITOS PARA O LOGRADOURO SER OFICIALIZADO
No entanto, o que se verifica na proposta que objetiva dar nome a logradouro público “Rua Décio Araújo”, no Bairro São João Batista, é a existência de óbice intransponível ao êxito da iniciativa, uma vez que, conforme informação da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano e Habitação[2], foi constatado que “o logradouro não faz parte de um parcelamento aprovado pelo Executivo”.
O que se percebe, portanto, é que o referido logradouro não reúne condições de ser oficializado e, por conseguinte, não é passível de receber denominação oficial. Assim, é imperioso ressaltar que a atribuição de denominação pressupõe o prévio reconhecimento, pelo Poder Municipal, da natureza pública do logradouro.
Observe-se que para a oficialização de vias e logradouros públicos, se faz premente obedecer às normas urbanísticas, nos termos do inciso XX do art. 71 da Lei Orgânica do Município, senão veja-se:
“Art. 71. Compete ao Prefeito, entre outras atribuições:
…………………………………………………………………………………………………………………..
XX – oficializar, obedecidas as normas urbanísticas aplicáveis, as vias e logradouros públicos, mediante denominação aprovada pela Câmara;
…………………………………………………………………………………………………………………”
(grifos acrescidos)
E, nesse sentido, o sistema de denominação de vias ainda não incorporadas ao domínio público, constitui uma prática que, além de desconsiderar e desrespeitar o disposto no inciso VIII do art. 30, no art. 182 e no art. 225 da Magna Carta, afronta dispositivo legal insculpido na Lei Complementar n° 2.699, de 10 de outubro de 2006, Plano Diretor Municipal, e na Lei Orgânica de Santa Luzia, que estabelecem regras para parcelamento e desmembramento do solo urbano no Município.
III – DAS ÁREAS CONSIDERADAS IRREGULARES OU CLANDESTINAS
Outrossim, a referida denominação acaba por servir de subterfúgio[3] para reivindicação de implantação e/ou legalização de redes de infra-estrutura e de parcelamentos de solo clandestinos ou irregulares, às vezes localizados, até mesmo, em áreas consideradas pela legislação federal como de preservação permanente.
Por conseguinte, essas vias passam a existir de fato no Plano Diretor, dando a concreta sensação à coletividade de que houve sua regularização.
De acordo com o autor Bevilaqua[4], a competência que possui o Poder Legislativo municipal em relação à matéria é a de denominar e alterar as vias incorporadas ao patrimônio público nos estritos e rígidos termos permitidos na lei, não aquelas áreas advindas de formas irregulares.
Note-se a premente necessidade de estrita obediência às normas urbanísticas para uma posterior denominação de vias e logradouros públicos, o que significa dizer que a ausência de aprovação de parcelamento do solo para o logradouro é impedimento legal para que se lhe outorgue um nome próprio.
Desse modo, resta impossibilitada a denominação da rua objeto da proposta, eis que descumprido requisito legal imprescindível à sua constituição como logradouro oficial, revelando-se inviável a proposta em exame.
Sobre o tema já se manifestou o Superior Tribuna de Justiça:
“RECURSO ESPECIAL. DIREITO URBANÍSTICO. LOTEAMENTO IRREGULAR. MUNICÍPIO. PODER-DEVER DE REGULARIZAÇÃO. (…) As administrações municipais possuem mecanismos de autotutela, podendo obstar a implantação imoderada de loteamentos clandestinos e irregulares, sem necessitarem recorrer a ordens judiciais para coibir os abusos decorrentes da especulação imobiliária por todo o País, encerrando uma verdadeira contraditio in terminis a Municipalidade opor-se a regularizar situações de fato já consolidadas. 4. (…).5. Recurso especial provido.” (REsp 448216/SP, Rel. Ministro LUIZ FUX, 1ª Turma do STJ. DJ 17/11/2003 p. 204) (grifos acrescidos)
Importa salientar que o Regimento Interno da Casa Legislativa de Santa Luzia, ao fixar, no inciso IX do art. 80, como atribuição da Câmara a denominação de vias e logradouros públicos, pressupõe obediência às normas urbanísticas aplicáveis, conforme disposto no supracitado inciso XX do art. 71 da Lei Orgânica Municipal.
Destarte, há que ser considerado que a denominação de logradouros envolve matéria urbanística, inserindo-se em um contexto muito amplo, que abrange a sua oficialização, além de aprovação de planos de arruamento e outros mais.
IV – DAS DESPESAS INDEVIDAS CAUSADAS PELA APROVAÇÃO DA LEI
Ademais, outro grave problema causado pela aprovação de lei denominando via pública ainda não incorporada ao domínio público é que o Município passa a realizar melhoramentos naquela via, a exemplo do asfaltamento, gerando um dispêndio irregular, em flagrante afronta às leis orçamentárias, em especial à Lei Complementar n° 101, de 04 de maio de 2000, Lei de Responsabilidade Fiscal.
Isso porque a responsabilidade da gestão fiscal compreende a prevenção de riscos e a correção de desvios, com a finalidade de se manter o equilíbrio das contas públicas, nos termos do § 1º do art. 1º da Lei Complementar Federal nº 101, de 2000.
Soma-se a isso o fato que o Município passa a ter a obrigação de indenizar moral e materialmente alguém que, porventura, caia em um buraco existente na via que veio a ser denominada pela lei, já que passa a ter responsabilidade sobre ela.
Além disso, o Poder Legislativo acaba por exigir do Poder Executivo a prestação de eventuais serviços públicos nessas áreas irregulares e/ou clandestinas, gerando mais uma vez uma despesa indevida.
Desse modo, há efetiva ocorrência de invasão do Poder Legislativo na competência administrativa afeta ao Chefe do Poder Executivo, estando o ato parlamentar em conflito com o disposto no art. 2° da Constituição Federal, de 1988, que estabelece o Princípio da Separação dos Poderes.
Nesse ponto, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Recurso Extraordinário 302.803-1, já reconheceu:
“RECURSO EXTRAORDINÁRIO. LEI Nº 2.645/98 DO MUNICÍPIO DO RIO DE JANEIRO. ‘RUAS DE VILA’. RECONHECIMENTO COMO LOGRADOURO PÚBLICO. REPRESENTAÇÃO POR INCONSTITUCIONALIDADE EM FACE DA CONSTITUIÇÃO ESTADUAL. OFENSA AO PRINCÍPIO DA INDEPENDÊNCIA E HARMONIA ENTRE OS PODERES. ART. 7º DA CONSTITUIÇÃO ESTADUAL DO RIO DE JANEIRO. ART. 2º DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. 1. Ao determinar drásticas alterações na política urbanística do Município, convertendo áreas particulares em logradouros públicos e impondo ao Estado o dever de prestação de serviços públicos nessas áreas, a incrementar a despesa sem indicar a contrapartida orçamentária, usurpou o Legislativo municipal função administrativa atribuída ao Poder Executivo local. 2. Recurso conhecido e improvido.” (grifos acrescidos)
Destarte, não há como reconhecer legítima a prática de denominação de vias ainda não previamente incorporadas ao patrimônio público, eis que afronta todo o ordenamento jurídico que disciplina a matéria, em especial às leis orçamentárias e o princípio da separação de poderes, em flagrante inconstitucionalidade.
V – DA COMPETÊNCIA DO PODER LEGISLATIVO MUNICIPAL
Frisa – se que a competência que possui o Poder Legislativo Municipal[5] em relação à matéria, é a de denominar e alterar as vias realizadas e incorporadas ao patrimônio público nos estritos e rígidos termos permitidos na lei, não e nunca aquelas advindas de formas irregulares, pela própria incoerência que tal ato se reveste.
Desconsiderados tais aspectos, será ilegal e inconstitucional o reconhecimento da via como pública. No entanto, é justamente isso que vem ocorrendo no Legislativo Municipal: o encaminhamento de inúmeras proposições, denominando vias ainda não incorporadas ao domínio público, fruto de parcelamento irregular ou clandestino do solo, podendo ocasionar degradação do Município e sérios prejuízos ao erário, em uma verdadeira afronta ao ordenamento jurídico vigente.
Em consequência, a forma de proposição que vem sendo empregada por esta Egrégia Câmara, qual seja sem a observância das regras que regem a matéria, está sendo motivo de permanente veto do Poder Executivo Municipal.
VI – DAS DISPOSIÇÕES FINAIS
Portanto, desconsiderados tais aspectos, será ilegal e inconstitucional o reconhecimento da via como pública. Assim, denominar um logradouro dessa natureza, localizado em área que não se apresenta como regularizada, significa reconhecer seu caráter público, com as implicações decorrentes do ato.
Observa-se que a prática de denominação[6] de vias ainda não incorporadas ao domínio público contribui para a ocupação desordenada do Município, por certo devendo ser extirpada.
Assim, evitar-se-á a ocorrência de danos irreversíveis ao meio ambiente e prejuízos à sadia qualidade de vida e à função sócio-ambiental da propriedade, parâmetro constitucional inarredável a ser observado pelos Municípios que estão incumbidos de promover o adequado ordenamento territorial, bem como o controle de uso, parcelamento e ocupação do solo urbano.
Como exposto, pelo que foi conferido no âmbito da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano e Habitação, a via de que trata esta Proposição de lei não se enquadra entre logradouros oficializados, fato que impede seja ela denominada.
E, nesse sentido, a Administração Pública, por razão de coerência, não pode oficializar ou denominar logradouros, em inobservância a requisitos estabelecidos pelo próprio Poder Público.
Soma-se a isso o fato que a denominação de logradouro em áreas tidas como irregulares é um problema social, haja vista que com a aprovação de leis denominando vias sem sua prévia incorporação ao domínio público, a população moradora de tais vias, entende que sua situação se regularizou.
A Secretaria Municipal[7] responsável pela matéria, após a publicação das leis denominando vias, passa a aceitá-las na apreciação de pedidos de aprovação e licença para edificações, já que elas são incorporadas de fato ao Plano Diretor.
Por todo o exposto, a propositura não é passível de receber a sanção do Executivo, por contrariar as disposições legais e constitucionais existentes sobre a matéria, mostrando-se, ainda, inoportuna, por contrariar o interesse público atinente ao ordenamento urbanístico, que deve ser feito em consonância com as normas e preceitos legais em vigor, restando configurados os motivos a justificar o veto, não se podendo conceber um Município organizado, sem que haja respeito a suas leis, que são aprovadas pela própria Câmara Municipal.
Todo um esforço de planejamento[8], que demanda estudos e discussões, acaba sendo deixado de lado, numa prática ilegal, que se propõe unicamente a efetivar o direito de moradia, mas que acaba por contribuir sobremaneira para o estímulo à ocupação desordenada do Município.
São essas, Senhor Presidente, as razões que me levam a opor veto total à Proposição de lei nº 047/2020, devolvendo-a, em obediência ao § 4º do art. 53 da Lei Orgânica Municipal, ao necessário reexame dessa Egrégia Casa Legislativa.
CHRISTIANO AUGUSTO XAVIER FERREIRA
PREFEITO MUNICIPAL
[1] HARADA, Kiyoshi. Direito urbanístico: Estatuto da Cidade: Plano Diretor Estratégico. 1. ed. São Paulo: NDJ, 2004.
[2] Comunicação Interna n° 659/2020
[3] CARRIÇO DE OLIVERIA, Bruno. Denominação de vias não incorporadas ao patrimônio público no município de florianópolis e as implicações ambientais e urbanísticas dos procedimentos adotados pela câmara municipal. REVISTA DA ESMESC, v. 18, n. 24, 2011
[4] BEVILAQUA, Itamar Pedro. Parecer PGM/SUPAMA nº 089/2004.
[5] Bevilaqua (2004, p. 4)
[6] CARRIÇO DE OLIVERIA, Bruno. Denominação de vias não incorporadas ao patrimônio público no município de florianópolis e as implicações ambientais e urbanísticas dos procedimentos adotados pela câmara municipal. REVISTA DA ESMESC, v. 18, n. 24, 2011
[7] CARRIÇO DE OLIVERIA, Bruno. Denominação de vias não incorporadas ao patrimônio público no município de florianópolis e as implicações ambientais e urbanísticas dos procedimentos adotados pela câmara municipal. REVISTA DA ESMESC, v. 18, n. 24, 2011
[8] CARRIÇO DE OLIVERIA, Bruno. Denominação de vias não incorporadas ao patrimônio público no município de florianópolis e as implicações ambientais e urbanísticas dos procedimentos adotados pela câmara municipal. REVISTA DA ESMESC, v. 18, n. 24, 2011
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